É um dos cultos da actual literatura. Autor de O Simpatizante, pensa temas como os refugiados e a identidade. Próximo livro: uma memória que narra um colectivo, inspirada por Lobo Antunes. | por Publico
Sou um espião, um infiltrado, um malsim,
um homem de duas faces.” A primeira
frase de O Simpatizante, romance que deu
o prémio Pulitzer a Viet Thanh Nguyen em 2017 e fez dele um dos escritores mais re-
verenciados da sua geração, transforma-se,
sete anos depois, no título de um livro de memórias do
escritor nascido no Vietname em 1971 e que aos cinco anos
foi parar a um campo de refugiados de guerra na Pensilvâ-
nia. A Man of Two Faces situa-se entre a memória e a His-
tória e tem como centro a experiência da mãe do escritor
que inevitavelmente se estendeu à família.
A narrativa pretende representar um colectivo a partir
da experiência de guerra, de uma identidade híbrida onde
se colam adjectivos como refugiado, emigrante, alguém
pobre e sem alternativa atrás do sonho americano.
Com publicação agendada para o próximo Outono nos
Estado Unidos, o livro sairá em Portugal com a chancela
Elsinore, a mesma dos três livros anteriores de Viet Thanh
Nguyen: O Simpatizante, a colectânea de contos Refugiados
e o romance O Comprometido. É um território literário
onde estão alguns dos temas centrais da literatura de
Nguyen, que acontece estarem entre os mais sensíveis da
agenda global. É político, mas é literatura, lembra: “Como
escritor, a minha tarefa é criar arte que se espera que seja
bela. (…) Mas bela no sentido em que a arte é o melhor que
posso fazer, mas também é intransigente, não só em ter-
mos estéticos, mas também no que tenho para dizer.”
Em A Man of Two Faces discute-se ainda a questão da
identidade. Ser americano, ser vietnamita, carregar uma
história, ter muitas faces, algumas aparentemente con-
traditórias. E ser eticamente dificil de gerir. “O livro expõe-
me, expõe a minha família e a única forma de justificar
esse projecto de me exibir e trair a mim próprio e à minha
familia, especialmente à minha mãe, foi situar as nossas
experiências na História.”
Falámos com ele por videochamada a partir de Pasa-
dena, perto de Los Angeles, onde vive com a mulher e os
dois filhos. A pequena Salomé, de três anos, assistiu ao
início da conversa. No dia seguinte, Viet apanhou o avião
que o levou a Lisboa — foi o convidado do mais recente
Meet the Author, na FLAD — Fundação Luso-Americana
para o Desenvolvimento.
O seu novo livro, A Man of TwoFaces, está a ser
apresentado como um livro de memórias.
Sim, bastante fáceis de ler [risos]. Nunca pensei que a
minha vida fosse muito interessante. Mas, nos últimos
anos, escrevi muitos ensaios para os media americanos
sobre várias questões políticas actuais. A seguir à publi-
cação de O Simpatizante vivemos um período muito
controverso nos Estados Unidos e o meu editor queria
que eu escrevesse um livro de não-ficção baseado nesses
ensaios sobre política, raça e história. Disse-lhe que sim.
Na altura, eu andava pelo país a dar muitas palestras
sobre os meus livros e, ao mesmo tempo que falava dos
meus livros, contava uma história da minha vida e dos
meus pais. Aconteceu que esse livro de não-ficção se
tornou um livro de memórias que aborda muitos temas
políticos, desde o racismo à guerra e aos refugiados, mas
juntamente com a história da minha família.
Como chegou a essa fórmula?
Para me distanciar de mim próprio, fingi que o estava a
escrever como se fosse o Simpatizante [protagonista do
romance com o mesmo nome]. O Simpatizante não é
sobre mim, mas injectei nessa personagem muitas das
minhas emoções e criei uma voz muito poderosa. O inte-
ressante foi ter pegado na voz dele e tomá-la para me
permitir escrever estas memórias. É um livro muito pes-
soal, mas para mim é fundamental que ele situe a histó-
ria da minha familia. Não é apenas uma história familiar;
está em relação com uma história muito mais vasta de
guerra, refugiados e racismo.
Podemos dizer que este é um livro de memórias
d’O Simpatizante?
Sim. De alguma forma. As pessoas que leram O Simpati-
zante sabem que é um thriller, um romance de espiona-
gem com muito comentário social e, esperemos, muito
humor, diversão e sátira. O desafio destas memórias é
que tratam de questões muito sérias e de algumas tragé-
dias da minha familia, mas também da história america-
na e da história vietnamita. E, penso, também com
humor e sátira.
Ia perguntar-lhe precisamente o que fez com o
humor d’O Simpatizante…
Ainda está aqui. O Simpatizante lida com as tragédias e
os absurdos da guerra e da política e implica tanto os
Estados Unidos como o Vietname. E o humor é crucial
nisso. Um dos temas centrais é o contraste entre a impor-
tância dos nossos ideais políticos e o que acontece quan-
do esses ideais esbarram com a realidade e envolvem
falhas humanas, hipocrisias e contradições. Acontece
em todos os países. Nesse sentido, nada mudou neste
livro de memórias. Quero dizer, eu tenho duas faces.
Continuo a lidar com as histórias complicadas dos Esta-
dos Unidos, do Vietname e de França. E os fracassos dos
ideais que esses países tiveram. Tenho coisas muito sérias
a dizer sobre esses fracassos, mas também vejo neles o
humor e o absurdo.
Sobretudo na ficção. Nos ensaios é mais contido.
Sim. Por isso, o desafio deste livro, que é de não-ficção:
saber se consigo usar o humor para falar, mais uma vez,
de coisas muito terríveis e trágicas. Caberá aos leitores
decidir se fui capaz.
Estamos a falar de um livro que ainda não saiu e
sobre o qual já se escreveu bastante. Sobre a capa,
por exemplo, sobre os temas, sobre o facto de
serem memórias. Memórias/ficção?
É um livro de memórias/história. Um homem de duas
caras, expressão que escolhi para título, está no início
de O Simpatizante. Ele é claramente um homem de duas
faces. Mas também senti que eu era isso. A forma como
sobrevivi nos Estados Unidos como refugiado, como
asiático-americano, implicou ter múltiplas identidades
e múltiplas faces.
Foi muito importante ter o subtítulo, A Memoir, A His-
tory, A Memorial, porque é um livro de memórias, é uma
história do país — os Estados Unidos — e um memorial à
minha mãe, figura central no livro. Quando ela morreu,
em 2018, foi a ocasião para eu pensar ao que ela tinha
sobrevivido enquanto mulher nascida na pobreza no Viet-
name. Teve muito pouca educação, enriqueceu no Viet-
name apenas através de trabalho árduo e alguma sorte, e
perdeu quase tudo ao tornar-se refugiada nos EUA. Voltou
a ter de recomeçar e a ser bem-sucedida. Pelo caminho,
foi afectada por uma doença mental muito grave, e acabou
por ir para um hospital psiquiátrico três vezes. Isso deixou
uma marca enorme na minha familia e em mim.
No livro tento responder à pergunta se a sua doença
resultou simplesmente de algo que estava a acontecer
dentro dela ou se era também resultado da história que
teve de suportar. A história da minha mãe é importante
porque não é única. Na experiência de sobreviventes da
guerra há muitas histórias de traumas, doenças mentais,
questões emocionais pessoais não resolvidas que se tor-
nam questões familiares, porque a história é transmitida
emocionalmente no seio das famílias. Este livro é um
memorial à minha mãe e às pessoas como ela.
O Simpatizante saiu numa altura de grande
movimentação social e política nos Estados
Unidos. Pouco depois, Trump era eleito
Presidente, com um discurso anti-refugiados.
Um dos seus livros, no qual reúne uma série de
contos, chama-se Refugiados. O tema é crucial na
sua obra, incluindo no livro que aí vem.
Entre OSimpatizante e A Man of TwoFaces,
o que acha que mudou em relação aos
refugiados nas agendas políticas dos EUA
e do mundo?
Penso que está a piorar. Lembro-me de que, em 2017, a
propósito da publicação do livro de contos em França,
eu estava a ser entrevistado em Paris por jornalistas fran-
ceses que me diziam que a ideia, por parte dos america-
nos, de que os imigrantes eram bem-vindos em França
era errada. Diziam-me que não apoiavam nada os imi-
grantes económicos, que apoiavam, sim, os refugiados
políticos. Isso foi em 2017. Em 2020 a polícia francesa
estava a expulsar refugiados. No espaço de três anos,
toda a ideia de que os refugiados eram bem-vindos em
França foi por água abaixo.
Quando comecei a falar de refugiados, em 2016, citava
números do ACNUR, a agência das Nações Unidas para
os refugiados. Na altura, creio que havia cerca de 20
milhões de refugiados em 60 milhões de pessoas deslo-
cadas. Agora, sete anos mais tarde, a população de refu-
giados é de cerca de 32 milhões em 103 milhões de des-
locados. Os números cresceram de uma forma muito
acentuada e a culpa não é dos refugiados. Os refugiados
estão a ser tratados como uma crise. Mas a verdadeira
crise está no nosso sistema global e nas nossas nações
que estão a produzir estes refugiados, a transformá-los
num espectáculo, a criar histeria e por aí fora. Este livro
é muito sobre isso.
Eis que temos Trump de novo em cena e aparen-
temente nada mudou. As energias e os ódios que ele
encarna e desencadeia continuam a existir. Os Estados
Unidos, e muitos países, estão apenas à espera de serem
despertados pela pessoa certa na situação certa.
[Abre olivro numa página onde aparecem pontualmente pa-
lavras riscadas]. Sabe o que são todos estes pontos negros
no livro? São as palavras Donald Trump. Na última revi-
são recusei pôr o nome dele no meu livro. O livro vai sair
no Outono de 2023 e haverá eleições presidenciais em 2024.
Donald Trump parece que vai voltar. É um livro
muito oportuno, tendo em conta que ele vai continuar
a tentar utilizar esta retórica xenófoba e racista e eu não
quero ter o nome dele, não quero sentir que pude con-
tribuir de alguma forma para passar essa mensagem.
A perseguição aos refugiados continua a ser um
enorme argumento político.
Claro. Os refugiados têm sido e serão centrais, seja na
Europa ou nos Estados Unidos, em todas as conversas
sobre nações, sobre fronteiras, sobre capitalismo, sobre
guerra. Todas as contradições em torno destas questões
vão colocar os refugiados como o problema. Este livro
não pretende apenas dizer que devemos acolher os refu-
giados — o que penso que devemos fazer — mas que os
refugiados não são um problema. Os refugiados devem
representar uma possibilidade de solução. Este livro diz
que os refugiados devem apresentar-nos uma oportuni-
dade de transformação, mas vai ser uma enorme luta
política.
A guerra na Ucrânia criou uma nova onda de
refugiados e estabeleceu-se uma comparação
imediata entre o modo como a Europa, em
particular, mas também o resto do mundo lidaram
com ela face a outros refugiados. Houve quem
falasse de uma espécie de esperança, que essa nova
crise pudesse alterar o modo como se olham
globalmente os refugiados…
Lembro-me de que quando os ucranianos fugiram nos
primeiros meses da guerra, havia os brancos e os outros.
Os que pareciam de África não eram tão bem recebidos.
O livro menciona isso, mas também que alguns ucranianos
encontraram o caminho para o México e entraram nos
Estados Unidos através da fronteira no sul; foram autori-
zados a entrar, enquanto os migrantes da América Central
foram impedidos. É um pouco hipócrita, para a Europa,
para os EUA, a Ucrânia ser claramente mais uma lição de
como o racismo continua a funcionar no imaginário oci-
dental. Uma lição acerca do que é considerado humano,
de com quem nos identificamos. Considero absolutamen-
te necessário que os refugiados ucranianos sejam acolhi-
dos na Europa e nos EUA, mas deveríamos estar a fazer o
mesmo para toda a gente. Essa deve ser a lição.
Outra das questões que tem tratado na sua
literatura e que ganhou mais importância ou
urgência tem que ver com o colonialismo. O tema
aparece tanto na sua ficção como nos seus ensaios.
Em 2023, qual é a principal pergunta que o escritor
Viet Thanh Nguyen quer fazer sobre o assunto?
Os colonizadores gostariam de imaginar que a coloniza-
ção acabou, que é uma questão do passado e que deve-
ríamos seguir em frente, o que é muito vantajoso para
esses mesmos colonizadores. Já nos apropriámos da ter-
ra, da riqueza e do trabalho de todo o tipo de pessoas em
países colonizados. Mas a história do colonialismo não é
história, é presente. Está no presente. Os efeitos do colo-
nialismo ainda se fazem sentir nos países colonizados e
em muitos sítios a colonização ainda não acabou.
Os americanos, os americanos brancos, não pensam
que o colonialismo os afecta. Pensam que este país foi
fundado e que, ao contrário da Europa, os Estados Uni-
dos não foram colonizados, que é diferente. Mas se per-
guntarmos aos povos indígenas, aos nativos americanos,
eles dir-nos-ão: “Os Estados Unidos continuam a ser um
país colonial.” São um país colonial de colonos, as pes-
soas vieram de outros sítios, principalmente da Europa,
e instalaram-se aqui como colonizadores e ainda cá es-
tão. Alguém como eu, que chega como refugiado ou
como imigrante aos Estados Unidos, também é colono,
mas chamam-nos refugiados ou imigrantes, e somos
usados como prova de que o sonho americano funciona.
Toda a gente quer vir para os Estados Unidos! E nós pró-
prios acreditamos nisso: o sonho americano é tão pode-
roso que a minha família chegou e fomos colocados num
campo de refugiados numa base militar americana cha-
mada Fort Indiantown Gap, na Pensilvânia. E, durante
toda a minha vida, nunca pensei duas vezes na razão
pela qual aquele lugar se chamava assim. A nossa exis-
tência aqui nos Estados Unidos — nós, a minha fanulia
— está completamente ligada à dos colonizados, do ponto
de vista histórico, tal como no presente.
Os americanos não gostam de falar sobre o colonia-
lismo dos colonos. Dão-lhe um nome diferente: o Sonho
Americano. A maioria dos americanos não quer ouvir
isto, mas para mim esta é a realidade. A história dos re-
fugiados e dos imigrantes como eu e dos asiático-ameri-
canos está completamente ligada à história do colonia-
lismo e a história do colonialismo é também a história
do capitalismo global. O colonialismo não acabou, não
está acabado. É uma parte completamente integrada do
nosso sistema capitalista global. Todos continuamos a
ser afectados por ele e muitos de nós continuamos a
lucrar com ele.
E o que é que The Man ofTwo Faces acrescenta
sobre a questão da identidade tão central nos seus
romances? Ou seja, como lida com esse paradoxo
de ser americano e vietnamita, estar do lado da
vítima e do inimigo; como pensa a sua identidade?
A ideia de ser uma pessoa com duas caras e duas mentes
é muito pessoal para mim. Mas também espero que seja
um pouco universal. Provavelmente, muitas pessoas
sentem que têm múltiplas faces, múltiplas identidades
baseadas nas suas situações pessoais. Mas muitas sentem
que essas identidades lhes são impostas. Não creio que
eu quisesse ser uma pessoa de duas caras, um homem
de duas caras. Não tive escolha. Quando se é refugiado
ou imigrante ou asiático-americano nos Estados Unidos
não se tem escolha. Esses rostos são-nos impostos.
A questão da identidade é muito importante para mim
porque sinto-a todos os dias. Sou constantemente recor-
dado disso, de que me vêem de uma determinada forma,
e não tenho qualquer controlo sobre isso. Isto não é ex-
clusivamente americano. Por exemplo, quando a covid
surgiu aqui nos Estados Unidos, as pessoas olhavam-me
ou para alguém parecido comigo e diziam “Oh, pareces
chinês” ao mesmo tempo que se pensava que a covid era
uma invenção chinesa. Também aconteceu na Europa,
na Austrália, no Canadá, em todos os países onde as pes-
soas que pareciam asiáticas estavam sujeitas a esse tipo
de racismo.
Esses olhares sobre as identidades são tratados como
culturais, mas acho que o problema é político. É político
devido às interacções do colonialismo que colocaram a
Ásia e o Ocidente em contacto. Parto da questão da iden-
tidade, mas ligo a minha identidade a histórias mais
vastas. Por exemplo, ao colonialismo, ao capita-
lismo, às guerras que puseram a Ásia e o Ocidente em
confronto. A minha identidade não será resolvida du-
rante a minha vida porque estes problemas maiores não
vão desaparecer. Isso tem um enorme potencial para
mim enquanto escritor. Mas estes livros não são apenas
sobre mim; são sobre — e insisto muito nisto — as crises
no Ocidente. E com isto voltamos à ideia de que os refu-
giados são a crise. Não, os refugiados não são a crise: são
aqueles a quem se atribui a culpa pela crise. Mas a crise
é sistémica e estrutural, e está dentro do Ocidente e das
suas relações com a Ásia e com outros países que o Oci-
dente colonizou ou com os quais travou guerras ou aju-
dou a produzir refugiados.
É um escritor de ficção, mas também é professor e
ensaísta. Quando fala sobre estas questões como
escritor, como ensaísta, como professor, quais são
as suas principais preocupações em cada uma
dessas funções, ou seja, onde ficam os argumentos,
o activismo, a literatura? Há conflito de interesses,
fronteiras que separam cada uma destas funções
no homem com tantos rostos?
Como escritor, a minha tarefa é criar arte que se espera
que seja bela, sendo a beleza altamente subjectiva, certo?
Bela no sentido em que a arte é o melhor que posso fazer,
mas também que a arte é intransigente, não só em ter-
mos estéticos, mas no que tenho para dizer. Tento ser o
mais honesto possível comigo e, portanto, com os leito-
res também. O Simpatizante, penso, é um romance mui-
to honesto porque diz coisas em que acredito, mas que
transformei em ficção. E quando confrontamos as pes-
soas com a nossa verdade isso pode ser muito perturba-
dor, porque a relação delas com a verdade pode ser
muito diferente da minha ou da sua.
No caso dos americanos, por exemplo, querem acre-
ditar que o seu país é o melhor país do mundo. E acredi-
tam que toda a gente quer liberdade da forma como eles
a definiram. Em todos os meus livros digo que a América
não é o melhor país do mundo. E que o fruto americano
da liberdade pode ser muito perigoso. A maioria dos
americanos, muitos americanos, não quer ouvir isso.
Este é apenas um exemplo de como lidar com o incó-
modo. A tarefa de todos os escritores deve ser produzir
a melhor arte possível e contar as coisas mais honestas
que puderem. É difícil fazer as duas coisas porque a
maioria dos leitores, muitos leitores, talvez a maioria, só
quer ser entretida.
Concluindo, foi dificil escrever este livro.
Sim. E a outra coisa dificil num livro de memórias é que
diz coisas sobre pessoas como a minha mãe, coisas que
tenho quase a certeza que a minha mãe não quereria que
eu dissesse em público. É um enorme dilema ético e
pessoal que todos os escritores têm de enfrentar quando
escrevem sobre outras pessoas. Há ainda outra: é que se
escrevermos sobre outras pessoas e dissermos “Vou
contar a verdade sobre outras pessoas” só é convincen-
te se contarmos a verdade sobre nós mesmos. Por isso,
todas as memórias têm de expor o escritor tanto quanto
expõem as outras pessoas. Neste livro também se expõe
a nação. E isso é muito dificil. Obviamente é dificil expor
outras pessoas se tivermos algum sentido de ética, mas
também é extremamente dificil expormo-nos, porque é
muito assustador falar das nossas vulnerabilidades, fra-
quezas e fracassos. E todos os livros de memórias têm
de o fazer.
Ainda sobre a autoficção e sobre memória, como
distinguir entre exposição e exibicionismo? O seu
livro pode estar nessa fronteira artilhada.
Uma das razões pelas quais nunca quis escrever um livro
de memórias foi exactamente por causa do que acabou
de dizer: não gosto da ideia de memórias enquanto exi-
bicionismo individual, autopromoção individual ou
autopiedade. Exibimo-nos, transformamo-nos num
espectáculo e isso serve para vender livros. Não estou
nada interessado em fazer isso. Mas, na verdade, o livro
expõe-me, expõe a minha família e a única forma de
justificar esse projecto de me exibir e trair a mim mesmo
e à minha família, especialmente à minha mãe, foi situar
as nossasexperiências na História. É aqui que se situam
estas memórias. A maior parte das memórias são muito
individualistas e, nesse sentido, quando alguém como
eu, um refugiado ou um imigrante, escreve uma memó-
ria muito individualista é muito apolítico, porque os
leitores vão abordar o livro e dizer: “Oh, bem, pobre de
ti e da tragédia que a tua família viveu”, e pronto. Enquan-
to este livro diz: sim, nós vivemos a tragédia, a guerra, a
experiência dos refugiados, a doença mental, mas sabem
que mais? Não é apenas individual. É individual, porque
foi isso que realmente nos aconteceu, mas também é
muito colectivo, porque nada disto teria acontecido se
não fosse a guerra e os Estados Unidos e o Vietname e o
capitalismo e o comunismo e o colonialismo. O género
memoir foi concebido para nos isolar enquanto escrito-
res e contadores de histórias. E este livro insiste não só
na história individual, mas também na história colectiva
de comunidades e prisões culturais.
Quando pensa em grandes memorialistas, pensa
em quem?
O escritor alemão W.G. Sebald foi uma grande influência.
Ao ler Sebald é impossível ver no seu trabalho a linha
entre ficção e não-ficção, entre romance e memórias.
Ele esbateu muito deliberadamente essa fronteira. E este
livro inspira-se nisso. É um livro de memórias, mas é
também uma história e um memorial. É tudo isto ao
mesmo tempo, está bem? Porque sim. A linha entre o
individual e o colectivo aparece sempre esbatida para as
pessoas que têm duas faces. Outra grande influência é o
vosso escritor António Lobo Antunes. Não me lembro
se foi o primeiro ou o segundo romance [Os Cus deludas,
1979] sobre a guerra portuguesa em Angola. Muito pou-
cos americanos o conhecem. Às vezes os americanos são
burros. E o vosso Lobo Antunes é um escritor demasiado
dificil. Tive muita sorte. Conheci-o em Itália há cinco
anos, acho, quando ele recebeu um prémio de vida e
obra. Mas esse romance, que foi muito influente para
mim, também esbate essa linha entre a ficção e a não-
ficção, entre a personagem do romance, a persona de
António Lobo Antunes e a sua própria história. Ao ler
esse romance senti que também podia ter sido um livro
de memórias. Não estou a dizer que é. Estou apenas a
dizer que tenho a sensação de um livro de memórias. E,
no entanto, está completamente imerso não só na his-
tória pessoal do narrador, mas na história de Portugal e
Angola. A minha história, a história da minha mãe, está
completamente inserida na história do Vietname e dos
Estados Unidos.
Uma professora em Berkeley disse-lhe que era o
pior aluno da turma dela. O que o fez não desistir
de ser escritor, ainda assim?
Acho que, pelo que ouço, a maioria dos escritores não
tem escolha, são levados a fazer isto, a escrever. Isso é
verdade para mim. Não sei se ser escritor é uma bênção
ou uma maldição porque a única coisa realmente neces-
sária para ser escritor é a vontade de se sentar sozinho
onde quer que seja e durante dez mil ou mais horas
escrever e olhar para dentro de si próprio. A maioria das
pessoas tem uso melhor para dez mil horas do que sen-
tar-se consigo mesmas e experimentar o fracasso todos
os dias, porque é isso principalmente o que a escrita é.
Quer dizer, às vezes escrever é muito bom.
Escrever O Simpatizante, por exemplo, foi uma expe-
riência muito rara para mim. Durou dois anos e a maior
parte dos dias foi um sucesso. Mas, sinceramente, a
maior parte de todos os dias da minha vida de escrita foi
de fracasso. E não sei como fui capaz, excepto por ser
muito teimoso e ter visto os meus pais fazerem isso todos
os dias. Trabalhavam todos os dias, de manhã à noite,
quando eu era criança e quando era adolescente. Isso
moldou-me porque foi uma experiência horrível vê-los
fazer isso, gerir uma mercearia, trabalhar, sacrificar-se.
Era muito feito por amor. E sacrificio no sentido católico.
Eu sou ateu, mas tirei essa ideia de sacrifício e amor, e
acho que interiorizei isso para poder fazer isto. Escrever
tem que ver com sacrificio e amor. Sacrificio e amor pela
arte. Sacrifício e amor pela crença na verdade e na arte.
Isto parece totalmente ridículo, esses ideais de verdade
e arte. Mas era nisso que eu acreditava. Também tive
muita sorte. De facto, acho que tive muita sorte. Resul-
tou. Pode não funcionar para toda a gente. Por isso, tem
razão, houve um enorme risco envolvido.