Winner of the Pulitzer Prize

“As minhas memórias começam quando me tornei refugiado aos 4 anos”

Viet Thanh Nguyen discusses The Refugees with João Céu e Silva in this interview for Diario de Noticias

O escritor Viet Thanh Nguyen nasceu no Vietname em 1971 e com a queda de Saigão em 1975 a família refugia-se nos EUA. Considera-se refugiado e é crítico da política anti-imigração de Trump. Uma entrevista exclusiva sobre o seu livro Refugiados.

O escritor que foi premiado com um Pulitzer pelo romance O Simpatizante, tentou durante 17 anos escrever vários contos sobre refugiados. Viet Thanh Nguyen confrontava-se com as próprias memórias de imigrante, quando aos 4 anos os pais fugiram de Saigão e foram para um campo de refugiados nos Estados Unidos. Nguyen viveu uma tragédia familiar, como recorda nesta entrevista: “Ninguém estava disposto a responsabilizar-se por toda a nossa família, assim os meus pais foram para um responsável, o meu irmão de 10 anos para outro e eu, com 4 anos, para um terceiro.” Garante que não suavizou as experiências de quem foi recebido nos Estados Unidos numa fase muito antes da política anti-imigração de Donald Trump, que relata em Refugiados.

Tem um escritor-fantasma logo nas primeiras histórias. É uma espécie de alter ego?

Apenas no sentido de que, como escritor, ao escrever sobre refugiados vietnamitas, sinto-me por vezes assombrado. Penso em todos os refugiados que não sobreviveram às suas viagens, que tentaram escapar do Vietname mas não conseguiram, ou que conseguiram chegar a um campo de refugiados apenas para serem enviados de volta. Penso sobre como cresci com uma espécie de fantasma em nossa casa, a minha irmã adotiva, que deixámos para trás e que era uma presença ausente nas nossas vidas. Penso em como cada lar de refugiados vietnamitas que visitei tinha fotografias a preto e branco das pessoas que haviam sido deixadas para trás. Penso em como a comunidade de refugiados vietnamitas nos Estados Unidos – cerca de um milhão de pessoas no total – estava repleta de histórias de perda, zanga, raiva, amargura e melancolia. Pareceu-me que a comunidade era assombrada pelo passado e por fantasmas reais, e que qualquer um que escrevesse sobre essa comunidade teria de ser um escritor-fantasma.

Escolheu os personagens tendo em conta algum critério que não o da inspiração?

Sim. Queria pintar um retrato do mundo dos refugiados vietnamitas que desse a entender que havia muitos tipos diferentes de pessoas que viviam nele ou se depararam com ele. Os vietnamitas não são todos iguais, mesmo que assim pareçam aos outros. Os vietnamitas são tão diferentes quanto as pessoas de qualquer outra nação, cultura ou comunidade. Então, deliberadamente, comecei a escrever histórias de homens e mulheres, jovens e velhos, heterossexuais ou homossexuais, militares ou civis, e assim por diante. Eu queria o desafio de imaginar pessoas que fossem bastante diferentes de mim, mesmo sendo vietnamitas. Também imaginei personagens que não eram vietnamitas, mas cujas vidas se cruzaram com as dos refugiados vietnamitas. Afinal, os refugiados vietnamitas não passam as suas vidas apenas entre outros refugiados vietnamitas.

A dedicatória só podia ser esta: “For all refugees, everywhere” [“Para todos os refugiados, em todo o mundo”]?

Sim. Já tinha dedicado livros anteriores aos meus pais, à minha mulher e ao meu filho, por isso achei que eles não ficariam aborrecidos comigo se este livro não lhes fosse dedicado. E no final, acho que foi a melhor dedicatória possível. Transmite o meu sentimento de que fui e sempre serei um refugiado, que nunca negarei ser um refugiado e que sempre acreditarei que devemos acolher refugiados.

A literatura é suficiente para relatar a dor física e emocional que coloca nos “seus” imigrantes?

Será a literatura alguma vez suficiente, e será qualquer coisa alguma vez suficiente sem literatura? A literatura não pode salvar o mundo e o mundo não pode ser salvo sem literatura. O meu livro de contos faz o que pode para mostrar a dor dos refugiados, mas nenhum livro os salvará por si só. A literatura é baseada na empatia, tanto para o escritor como para o leitor e, para o escritor, o ato de escrever é a ação que está ligada à empatia. Para o leitor, a questão é: se alguém sente empatia por causa do livro, que ação será tomada além da leitura? Eu não posso responder a essa pergunta pelo leitor.

Suavizou ou exagerou a violência física e moral que vai surgindo no livro?

Suavizei-a. O objetivo do livro não era sobrecarregar o leitor com um catálogo dos horrores que os sobreviventes da guerra e os refugiados sofreram. O meu foco era a vida emocional dos refugiados e alguns vislumbres da violência e do sofrimento que eles suportaram eram suficientes.

Publicar este livro num momento em que tantas histórias reais – e rivais – chegam ao nosso conhecimento não é ousado?

Teria sido ótimo publicar este livro há cinco, dez ou quinze anos, mas não estava terminado. O livro teve a sorte, se é que se pode dizer isso, de ser publicado ao mesmo tempo em que estava a acontecer uma crise de refugiados. Mas eu fiz parte de uma crise de refugiados há quarenta e três anos, e tenho quase a certeza de que as crises de refugiados continuarão no futuro, portanto, abordar a vida dos refugiados será sempre oportuno. Se existem histórias “rivais” e histórias “reais” de refugiados a acontecer hoje, o interesse do meu livro é que elas não são realmente novas e nem verdadeiramente mais reais do que o que aconteceu com os refugiados vietnamitas. E, claro, se pensarmos na história dessa forma, houve refugiados antes dos refugiados vietnamitas cujas experiências não são menos reais, simplesmente porque aconteceram mais para trás na história.

As memórias de um tempo em que os seus pais o trouxeram para os EUA tiveram peso na decisão de escrever este livro?

As minhas memórias começam quando me tornei um refugiado aos 4 anos. Nós chegámos aos Estados Unidos e fomos colocados num campo de refugiados. Para deixar o campo precisávamos de responsáveis americanos por nós. Ninguém estava disposto a responsabilizar-se por toda a nossa família, assim os meus pais foram para um responsável, o meu irmão de 10 anos para outro e eu, com 4 anos, para um terceiro. A minha memória começa com os uivos e gritos quando fui retirado aos meus pais. Para o meu bem, sim. Para ajudar os meus pais, dando-lhes tempo para conseguirem trabalho, sim. Mas era na mesma doloroso e incompreensível para uma criança de 4 anos, e o trauma da experiência moldar-me-ia de maneira que só compreendi totalmente passadas muitas décadas.

Qual o seu estatuto pessoal nos EUA: imigrante ou refugiado?

Eu sou um refugiado. Nos Estados Unidos, que têm uma forte mitologia de si próprios como uma nação de imigrantes, o imigrante é frequentemente elogiado (obviamente, não tanto hoje sob um presidente anti-imigração). Mas o refugiado foi sempre uma figura ambivalente. Talvez uma mão-cheia de refugiados seja aceitável. Mas centenas de milhares de refugiados são inquietantes, até aterrorizantes, para muitos americanos. Os imigrantes querem vir para os EUA, e um bom número de americanos quere-os cá. Os refugiados são indesejados no sítio de onde vêm e, muitas vezes, indesejados no sítio para onde vão. Muitas vezes os refugiados que são aceites nos Estados Unidos chamam a si próprios imigrantes, para que possam ser mais compreendidos. Eu recuso-me a fazê-lo. Eu chamo refugiado a mim próprio para que as pessoas saibam que é assim que um refugiado é. Eu chamo refugiado a mim próprio para me lembrar de defender sempre outros refugiados, o que alguns ex-refugiados se recusam a fazer.

Até que ponto a coincidência de ser publicado quando os EUA têm um presidente anti-imigração é bom para o livro Refugiados?

Vou generalizar e dizer que muitas pessoas anti-imigrantes não são grandes leitores. Ler literatura requer empatia e ser contra imigrantes e refugiados requer autolimitar a empatia. O nosso presidente anti-imigração tem uma empatia muito limitada, reservada para pessoas brancas, e não lê quase nada. Ele prefere a televisão e a televisão propagandista. Assim, para o meu livro sobre refugiados, é ótimo ter um presidente anti-imigração, porque as pessoas que amam livros tendem a não gostar deste presidente e este presidente não quer saber de livros. Ler sobre refugiados e imigrantes torna-se uma maneira de desafiar um presidente anti-imigração, antiliteratura, e os seus seguidores.

Muita da atual literatura norte-americana resulta de escritores que descendem de imigrantes. É uma oportunidade editorial, uma necessidade de homenagear os antepassados ou uma verdadeira expressão da atual literatura americana?

Todas essas coisas. A América é um país racista. É também um país que acredita no pluralismo, na oportunidade e no sonho americano. Assim, para corrigir os seus próprios fracassos racistas, a cultura americana está ansiosa por promover histórias de imigrantes e autores imigrantes. Temos a oportunidade editorial num mercado literário onde as histórias de imigrantes vendem bem. Quanto aos escritores imigrantes, eles entendem que podem explorar esse mercado literário enquanto honram as suas famílias, as suas comunidades e os seus ancestrais. De tudo isso, emerge uma grande quantidade de literatura não muito interessante sobre imigrantes, da mesma forma que a maior parte da literatura contemporânea não é muito interessante. E, daí, também emerge alguma literatura extraordinária escrita por imigrantes – e refugiados. Os escritores imigrantes que podem combinar grandes talentos com uma grande convicção sobre a necessidade de discutir as oportunidades e fracassos da América são alguns dos escritores mais empolgantes da ficção americana contemporânea.

Qual das histórias foi mais difícil escrever?

Mulheres de Olhos Negros. Teve cerca de cinquenta rascunhos ao longo de dezassete anos. Porque não me venceu, tornei-me escritor.

Uma das histórias relata o choque cultural de um jovem ao ir viver com dois homossexuais em São Francisco. Porque tem o lado da sexualidade sido ignorado neste êxodo contínuo de refugiados?

Decidi escrever uma história sobre a homossexualidade, porque queria cobrir o máximo possível da experiência dos refugiados vietnamitas e sabia que havia pessoas vietnamitas homossexuais, algumas das quais são minhas amigas. Na época em que escrevi a história, no início dos anos 2000, havia apenas um romance que abordava a experiência homossexual vietnamita, The Book of Salt [O Livro do Sal], de Monique Truong. Não havia muita coisa escrita sobre a homossexualidade na cultura vietnamita porque, na sua maior parte, ela não aceita abertamente a homossexualidade. Os escritores homossexuais vietnamitas tiveram de lutar para emergir tanto como vietnamitas quanto como homossexuais e, assim, não surpreende que, embora tenha sido publicada uma grande quantidade de livros de escritores americanos vietnamitas, só recentemente é que estejamos realmente a ver aparecer escritores vietnamitas homossexuais.

Joyce Carol Oates escreveu sobre si que era “um dos nossos grandes cronistas dos deslocados”. Concorda?

Eu sou um cronista dos deslocados. Deixarei os outros decidirem se a palavra “grande” se aplica.

O Pulitzer para O Simpatizante foi uma sombra durante a escrita deste livro?

Não! Porque escrevi este livro antes de O Simpatizante. Demorei dezassete anos para escrever Refugiados, e apenas dois para escrever O Simpatizante. Quando muito, o livro Refugiados foi uma sombra para O Simpatizante, porque enquanto estava a escrever o romance, ainda estava a sofrer com a dificuldade de escrever a coletânea de contos. Escrevi o romance o mais rapidamente que pude para escapar à sombra daquela coletânea de contos.

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