Público: Vietnam, a moral tragicomedy

Isabel Lucas interviews Viet Thanh Nguyen for Público.

Um narrador anónimo carrega a ambiguidade de se sentir entre o bem e o mal, o Ocidente e o Oriente. O Simpatizante traz essa contradição. É o romance de estreia de Viet Thanh Nguyen e venceu o Pulitzer em 2016. Uma sátira de espionagem.

Viet Thahn Nguyen tinha dez anos quando viu pela primeira Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola. “Lembro-me de ficar bastante confuso, mas também chocado.” Viet vivia perto de San Francisco. Chegara aos Estados Unidos em 1975, com quatro anos, um refugiado da Guerra do Vietname afastado dos pais e a viver com uma família de americanos “brancos” no interior da Pensilvânia. Quase um ano assim, até os pais se juntarem e abrirem uma pequena loja de produtos vietnamitas na Costa Leste. Era diferente entre uma elite privilegiada, branca, que lhe chamava vietecongue em vez do nome. “Vi o filme como um americano que adorava filmes de guerra e admirava os soldados americanos. Até ver que ali eles matavam soldados vietnamitas. Dei por mim partido em dois; enquanto americano matava e enquanto vietnamita era morto. Aquilo tornou-se um símbolo, para mim, de como Hollywood imaginou a guerra e de como os americanos em geral a viam”, diz numa conversa desde Paris.

Transportou esse choque de infância ao longo da vida até o transpor para a ficção em O Simpatizante (Elsinore) o seu primeiro romance, vencedor do Pulitzer Prize em 2016, livro politico que tenta dar uma dimensão universal a um conflito para o qual o mundo, diz, tende a olhar através dos olhos da América.

É um romance de espionagem cheio de contágios. Tem elementos da comédia negra, um namoro conflituoso com o cinema, notas de romance histórico e toca em temas como a imigração, refugiados. A sombra de Graham Greene está lá. Há alusões a O Americano Tranquilo, a uma tradição de construção de identidade ocidental e sobretudo norte-americana, com Walt Whitman, ao que é ser semiocidental num estado mais “onírico o que social”. E cita-se Kipling para sublinhar uma cisão civilizacional: “O Este é o Este e o Oeste é o Oeste, e nunca se encontrarão”. O narrador, homem anónimo, foi construído para carregar toda a ambiguidade em que o romance se sustenta.

Vingar-se de Hollywood

Não tem nome. É um refugiado, vietnamita do Norte que foi toupeira junto do exército do Vietname do Sul, e, perdida a guerra para os comunistas, foi forçado a ir para os EUA. “Sou um espião, um infiltrado, um malsim, um homem de duas faces”, apresenta-se na primeira frase do livro, reveladora da duplicidade de carácter facilitadora da sua actividade e que serve ao autor para montar uma narrativa focada no elemento desagregador de todas as guerras, em particular, a do Vietname. “Queria uma personagem que me permitisse falar do quanto esta guerra dividiu. Falar da guerra do Vietname não é apenas falar daquela guerra específica, mas do que está ligado a ela e inclui a colonização francesa, o racismo europeu face aos asiáticos e o grande confronto entre capitalismo e comunismo.

A narrativa desta guerra – e a de outras guerras – aproxima sempre quem a lê de um dos lados. “Tentei ultrapassar essa limitação criando uma personagem que incorporasse todas estas componentes, fosse capaz de ver as coisas a partir dos dois lados, mas também se sentisse dividida em relação a si mesmo. É uma personagem com simpatia pelos dois lados, pelo modo como cada um vê a sua tragédia. Tem duas faces. Literalmente, porque descende de um francês e de uma vietnamita, mas também de modo figurativo, porque está a sempre a mostrar caras diferentes a pessoas diferentes e a viver uma vida de disfarce e subterfúgio. Parte do romance fala do dilema da identidade. Saberá ele quem é? Quis uma dimensão universal porque a maior parte de nós sente muitas divisões, estamos muitas vezes a pôr máscaras, a sofrer secretamente acerca do que somos.”

Eis esta personagem por quem a criou. Um homem sem nome para acentuar a tal universalidade e vincar o que o escritor considera racismo: não dizer o nome do outro, do diferente. Aí entra mais uma vez Hollywood e a sátira a filmes como Apocalypse Now ou Platoon, de Oliver Stone. No romance são designados como o Filme, produção hollywoodesca para a qual o narrador é convidado a trabalhar como consultor. “Quanto mais tempo trabalhava no Filme, mais convencido ficava de que não era apenas um consultor técnico de um projecto artístico, mas também um infiltrado numa obra de propaganda.”

A teoria não é original, mas o modo como Viet Nguyen a desenvolve permite-lhe sublinhar o lado lúdico e alicerçar a tese de uma narrativa dominante. “Quando dizem Vietname dizem guerra e quando dizem guerra do Vietname dizem guerra americana. Isso ganha importância quando sabemos que Hollywood tem um poder global, é o ministério da propaganda não oficial da América. A América não precisa de um oficial porque tem Hollywood. Exportam histórias para todo o mundo e mesmo que as pessoas tratem os filmes de Hollywood com cepticismo, mesmo quando pensam que os EUA estavam errados nessa guerra, estão dispostas a aceitar o acordo para ver os filmes. É inevitável ser influenciado pela versão americana da Historia simplesmente por se estar constantemente a assistir a ela. Quando o livro satiriza Apocalipse Now é uma sátira a toda a industria, ao domínio global americano de exportação de histórias, um meio da América combater a guerra através da memória. Os vietnamitas venceram a guerra de facto, mas na maior parte do mundo nunca se ouviu a narrativa vietnamita. Quis apresentar uma versão vietnamita e vingar-me de Hollywood; dar uma perspectiva política, mas ao mesmo tempo divertir-me”, refere o escritor de 46 anos, professor de Estudos Ingleses, Americanos e de Etnicidade na Universidade do Sul da Califórnia, autor de livros sobre raça, movimentos de resistência e minorias, contista, que se apresenta como escritor.

 

A grande falha da simpatia

Viet Ngueyn não só não se acomoda à narrativa da maioria como tenta inovar a forma de contar. O Simpatizante constrói-se numa primeira pessoa em conflito interior que se deixa tocar pelas realidades envolventes. As outras personagens parecem falar através dele em vozes que se cruzam, línguas diferentes que convivem não apenas na mesma geografia, mas na mesma pessoa. Palavras que se evitam, outras que não são ditas mas são um eco permanente. A palavra “vítima”, por exemplo. “Quando se fala da Guerra do Vietname todos se acham vítimas, e todos foram de uma maneira ou de outra. É uma palavra de todas as guerras. Ser vítima, vitimizar-se, ser apontado como vítima. É uma posição muito problemática que permite continuar a fazer guerras. Mas há outra forma desta palavra ser perigosa: é um modo não apenas de nos permitir ser cegos, mas de culpabilizar, ter falhas morais, comportamentos desumanos. É ainda um meio de condescender. Senti muitas vezes que os americanos e os ocidentais em geral viram os vietnamitas como vítimas e faziam-no com boa intenção, mas também de forma condescendente; põem o povo vietnamita numa posição limitada, apenas vítima, como se isso significasse não ter controlo sobre o que lhe está a acontecer. Sim, os vietnamitas foram vítimas, mas muitos fizeram coisas, incluindo coisas terríveis, e por isso nós, vietnamitas, temos de nos responsabilizar pelo que fizemos. Ora isso é difícil. A comunidade vietnamita norte-americana, profundamente anti-comunista porque perdeu a guerra, olha-me com desagrado porque se recusa a acreditar que os vietnamitas do Sul tenham feito alguma coisa errada. Foram os comunistas que fizeram as coisas horríveis. O livro quer confrontar isso com um protagonista que não é simplesmente vítima. Ele também faz coisas horríveis. Dá corpo a esse dilema de ser vítima e vitimizador.”

Ele é O Simpatizante, alguém compreensivo com tudo, até com o horror ao ponto de não fazer nada para o impedir. “Essa é a grande falha da simpatia”, afirma o escritor que diz ter construído esta personagem a partir de emoções pessoais que depois dramatizou e satirizou. “Sou vietnamita e a minha personagem é metade vietnamita. A semelhança autobiográfica termina aí. O romance é sobre a guerra do Vietname, mas é ficção. Os escritores olham para dentro de si mesmos, das suas emoções, de modo a encontrar alguma coisa para pôr nos livros. Lembro-me de crescer como um refugiado e tornei-me muito americano, mas ao mesmo tempo sentindo-me vietnamita. Cresci com os meus pais, vietnamitas, em casa falava-se vietnamita, a comida era vietnamita, e enquanto me tornava americano, pensava: ‘sou estranho!’ Não sentia necessariamente uma duplicidade, mas como se a maior parte das pessoas não me entendesse, não importa onde estivesse. Fui buscar esse sentimento e pu-lo no meu espião. Ele é alguém com simpatia pelo comunismo mas seduzido pelo capitalismo; um revolucionário, mas também um reaccionário.”

Quando dizem Vietname dizem guerra e quando dizem guerra do Vietname dizem guerra americana. Isso ganha importância quando sabemos que Hollywood tem um poder global, é o ministério da propaganda não oficial da América

Viet fala do presente histórico, aquele em que o seu livro foi publicado. Refugiados, imigração, mitologia americana. Eram prementes em 2015, quando o livro saiu. Tornaram-se ainda mais em 2017. A sua identidade regressa. “Cresci a saber que era um refugiado e que ser refugiado era ter uma identidade problemática nos Estados Unidos. Este é um país de imigrantes mesmo no seu momento mais anti-imigrante como agora. Acho que os americanos continuam a acreditar que os imigrantes gostam de vir para a América. Os refugiados são mais problemáticos porque tipicamente não são bem-vindos, nem para os EUA nem para outros países. Tendem a olhar para os refugiados como desesperadas, desumanos, que podem roubar empregos, trazer doenças, violência, todo o tipo de vícios e problemas. É uma experiência que é a minha ao longo de quarenta anos. Os refugiados existem, mas só se fala deles periodicamente, quando há uma crise e ela interfere com os nossos medos e a nossa imaginação, como agora. Parte da minha intenção é dizer que a fronteira entre uma história de guerra e uma história de refugiados é muito ténue”.

Outra palavra, “embate”, e nela está contida a sensação de não pertencer a lado nenhum. Caso do Amerasiaticos, “entalados entre dois mundos”, ou o embate com o “monolinguismo” que afecta “a maioria dos americanos; o desconcerto perante uma ideia de sonho fundadora. “Os americanos gostam muito de pensar que há um sonho americano e que isso os faz diferentes e que o sonho de toda a gente é ser americano. A maior parte dos americanos acredita nisso e as pessoas que chegam aos EUA, imigrantes ou refugiados, querem acreditar nisso. E muitos passam um mau bocado para acreditar nisso. Os vietnamitas, por exemplo, que sabem da guerra e que em parte os EUA foram responsáveis, abandonaram o Vietname do Sul num tempo de  necessidade; foram traídos, mas jamais dizem isso em inglês por terem medo de ser vistos como ingratos. Eu não tenho medo de dizer estas coisas em inglês nem em público. Penso que mitologicamente o sonho americano existe, mas o pesadelo americano também. O romance quer  certificar-se de que podemos falar delas duas coisas.”

Para isso escolheu um caminho menos fácil. Não traduzir algumas expressão, não explicar rituais, falar de Billie Holiday e Elvis Phuong sem explicar quem é o segundo. A opção talvez lhe tivesse custado a recusa de muitos editores. “Qualquer imigrante ou refugiado que lide com duas línguas sabe o que é essa experiencia de tradução. Em crianças temos de traduzir para os nossos pais, mas também temos a sensação de que as pessoas da cultura maioritária esperam que as da cultura minoritária se traduzam. É uma experiência muito literária e faz parte da literatura. Quando os escritores das minorias escrevem ficção há a expectativa de qua a minoria escreva para a maioria e inevitavelmente a tradução se torna parte da ficção, de modo explícito ou implícito.

Eu não quis ser esse tipo de escritor minoritário. Quis sentir o privilégio dos escritores que pertencem as maiorias e acham que toda a gente os entende. Mesmo quando escrevo sobre uma experiência de minoria, faço-o à minha maneira e dou o meu melhor ao recusar-me traduzir. É arriscado. Será que poderia escrever um romance sobre uma experiencia que a maior parte das pessoas consideram estrangeira sem fazer uma tradução total?  Não espero que Dostoiévski me traduza a literatura russa. Espero prestar atenção suficiente para perceber do que é que ele esta a falar. Também quis que o meu leitor prestasse atenção”, refere este escritor que se confessa omnívoro enquanto leitor e brinca com o facto de ter finalmente feito o seu pai feliz. “Bastou-me ganhar o Pulitzer”, ri, lembrando que já disse isso outras vezes e que sempre que diz disso é como se sentisse legitimado nas suas intenções. Segue-se agora a sequela. O Simpatizante não termina aqui nas interrogações, implícitas ou explicitas. “O que é o Homem?” é só uma entre elas, as que carregamos com o narrador, no seu anonimato. Ficamos à espera de mais livros de Viet Thanh Nguyen.

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